Fui criado em
uma fazenda de propriedade do tio Manoel. Seus filhos a tia Neida e o Zeca. Meu
pai era o capataz, responsável pela administração desta propriedade que era uma
das outras três que o meu tio possuía. Os empregados eram contratados pelo meu
pai. Era ele que fazia as escolhas. Dentre eles o seu Alcir, um negro de meia
idade. Sim, ele era chamado de “seu Alcir” por todos, inclusive pelo meu pai, o
filho do dono da fazenda e pelo próprio. De todos os citados, o único que era
negro era ele, o “seu Alcir”. Mas vejam que hierarquicamente não havia nenhum motivo
para ele ter um tratamento de senhorio, tanto pelo seu contratante, meu pai,
como pelo filho do dono da fazenda, o Zeca e nem mesmo pelo dono da propriedade,
o tio Manoel. Mas eram assim chamados. O tio Manoel, o Zeca e o seu Alcir. Trabalhei
no Banco do Brasil onde no final de minha estada em São Sepé, a composição era
a seguinte: O gerente era o Eden Jaskulski, um polaco, e o continuo o seu Zé,
um mulato. Vejam a forma com que eram tratados os referidos elementos. O
gerente era o Eden, o contínuo o seu Zé. O gerente era branco e o contínuo um
mulato. Mas as formas de nos referirmos a cada um deles era distinta, o gerente
era “tu” e o continuo era “seu”. Nunca o Zeca se sentiu ofendido por chamar o empregado
do empregado do seu pai, por um tratamento mais pomposo do que o seu, mesmo
sendo ele o filho do dono da propriedade e o seu Alcir o empregado do empregado
do seu pai. O mesmo acontecia na agência do banco. Era com a maior normalidade
que se tratava o gerente de “tu”, e o contínuo de “seu”. Alguma coisa existia,
que nos induzia a usar o pronome de tratamento de acordo com o respeito que
tínhamos a pessoa a qual nos reportávamos. Esta, certamente não era a cor da
pele. Hoje somos impedidos de fazer qualquer referência a cor, tanto da pele
quanto de qualquer outro objeto. Recentemente a ministra Marina se sentiu
ofendida por uma pessoa usar o termo “caixa preta”, sendo que ela mesma já
havia feito tal referência. Tenho o maior respeito por ter um amigo que é “negão,
comunista e corintiano”, quando brinco com ele destas características, ele ri e
nem da bola. Sabe que eu estou me ridicularizando pela minha incapacidade de
saber discernir as coisas de forma correta. Claro que ele sabe que eu não estou
falando sério. E nunca me processou por isso. Também o filho do dono da fazenda
e nem o gerente do banco, agiu como a juíza que exigiu da testemunha, ser
tratada como “vossa excelência”. Será que algum dia seremos processados pelo
crime de “livrepensar”?. Ah! George Orwell, ainda bem que não estás entre nós,
senão estaria ainda dando ideias aos ditadores de plantão.
Afonso Pires
Faria, 02.12.2023.